sexta-feira, 8 de março de 2013

A graça do solitário


Eu tinha 15 anos quando ouvi falar pela primeira vez dos Smiths. Folheava alguma Bizz antiga, usada, uma forma de recuperar o tempo gastando menos. Com o dinheiro a mais do 13º, comprei “The Queen Is Dead”, o 15º álbum a entrar nas fileiras sob o meu toca-discos.

Já conhecia dois hits, Bigmouth Strikes Again e The Boy With the Thorn in His Side. Não foram eles, porém, que me fizeram gostar do disco. Foi I Know it’s Over, uma canção de amor para não praticantes da vida a dois, que cita mãe e autocomiseração.

Passei os últimos dias de 1991 a ouvindo. Era o meu hit. Quando o ano seguinte entrou, Smiths aos poucos foi se tornando um dos meus favoritos. Veio o meu segundo disco, Louder Than Bombs, uma coletânea dupla, e Strangeways Here We Come, que não entendi bem de início.

Era preciso, antes de tudo, entender a velocidade de como aqueles informações chegavam para o garoto de 15 anos. Eu entendia pouco inglês. Smiths, como Jesus and Mary Chain e Joy Division, eram influências de gente que eu gostava e cantava em português. Compreender algo além da melodia era complicado, mas eu me esforçava. I Know It’s Over, com a ajuda de um dicionário e de uma edição de letras traduzidas, eu já entendia. E bastava, por enquanto.

Entendi a ironia e o humor autopiedoso. Eu era assim, mas não sabia. Morrissey deu as dicas, no inglês que eu não aprendia. Aos 16, apaixonado por quem eu sabia não me amar, dediquei There’s a Light There Are Never Goes Out e um buquê de flores, rosas amarelas, ao amor não correspondido. Ria e amava a história do amor que resistia a um choque com um ônibus de dois andares e um caminhão. Era amor mais do que música. Era amor mais do que um sim.

À noite, quando saía, imitava a afetação de Morrissey sem ninguém entender. Tinha outras duas preferidas: Unloveable e Half a Person, histórias de um suburbano sem muitas chances. Completei minha coleção em 1993. E trouxe Your Arsenal, um solo de Morrissey mais adulto, e ainda mais irônico e engraçado. Todas as faixas de alguma maneira conversam comigo.

Revivi Morrissey em 1994,1997 e 2000. As duas primeiras por álbuns. A última pelo show em São Paulo, nos dois dias (a foto nesta página eu tirei no primeiro show). Já entendia melhor e achava graça em um repertório que incluía Shoplifters of the World Unite e Sweet and Tender Hooligan, finas ironias britânicas.

Morrissey, ao contrário de outros ídolos, não me cega. Não entendo sua fixação pelo National Front. Trocar o Reino Unido pela Califórnia também me engasga. Achei-o pateta e populista em Buenos Aires, 2004. E seus discos são fracos desde You’re the Quarry.

Mas sabe o que eu amo? É saber de tudo isso, poder analisar, depois de 20 anos, uma carreira (a dele) e uma vida (a minha). De ter um disco favorito que não é aquele primeiro (é o primeiro da banda), uma canção favorita que não é mais aquela (é Stop me If You Think That Heard This One Before, do disco que não entendia quando comprei) e de ter uma vida que vai muito além dos sonhos frustrados daquele tempo. A graça de ser solitário é o que me faz ser feliz.

domingo, 11 de março de 2012

Desespero que não é mais moda


A vida é ingrata. Ingrata porque, fosse justa, essa noite de domingo teria acontecido em 1992. Certamente choraria uns pingos a mais e me arrebentaria quando uma canção como I Know It's Over começasse a ser balbuciada, atropelando a introdução.

Mas, graças à vida, a gente pode rir do desespero e pensar que talvez ele tenha sido moda apenas em 1973 ou 1976, de acordo com a versão de A Palo Seco que você escutar. Como nasci entre essas duas datas, sou o old-fashioned boy do desespero. Não tem mais graça, não tem mais moda, eu só quero me desesperar um pouco. Deixa?

O desespero, nesse domingo de chuva rápida e intensa, que cismou de cair justamente quando esperava na fila, terminou assim que vi o primeiro tom de amarelo saindo das mangas da camisa de Steven Patrick Morrissey. Me atrevi a adiar o desespero por alguns minutos, 80 para ser mais exato.

Deixei um sorriso escapar em First of Gang to Die. E outros nas séries de músicas da carreira solo, como Let Me Kiss You e Everyday is Like Sunday, uma metáfora para o que acontecia ali, naquele lugar sem alma mas ao mesmo cheio de almas vagando desde o palco. Corpo e alma, coração e alma, como Morrissey repetiria até o fim.

Um traço de lágrima escorreu quando duas baquetas se encontraram e, atropelando a introdução como a versão ao vivo eternizada no disco Rank, Morrissey começou a executar I Know It's Over, que é A MÚSICA DA MINHA VIDA. Era aos 16, continua hoje.

Ao todo, foram sete músicas do repertório da antiga banda. Lamentações, amores perdidos e desespero, claro. Mas todas, cantadas por um homem com mais de 50 anos, soam debochadas, como se a adolescência passasse e a gente continuasse achando lindo morrer sob um caminhão de 10 toneladas ao lado da pessoa amada.

É claro que não acha mais. Mas é essa nostalgia da inocência que provoca um riso de conforto e um choro de se agarrar ao amor, verdadeiro ou não. A adolescência passou, mas o vácuo de um amor completo, que se possa entregar e ao mesmo tempo receber a entrega, continua. Como na manjada How Soon Is Now, em que o melhor é saber que, humanos, merecemos ser amados. Aos 36 anos, já somos? E se não, o que falta?

Um gongo gigante soou algumas vezes durante o show. Talvez ele servisse para acordar alguns fãs de que Morrissey não é mais o garoto platônico e assexuado dos anos 80. Ele escolheu seguir outros caminhos, montou uma série de boas bandas de rockabilly e foi se encontrar na Califórnia, rodeado de meninos. Ele não canta mais o sofrimento. Nessa carreira solo, uma das músicas mais intensas é Speedway, que fala... sobre um desentendimento com um jornalista do New Musical Express!!!

Ou seja, a vida segue. E o que era desespero em 1986 hoje é piada - não uma qualquer, mas um híbrido de ironia britânica e humor judaico, de autocomiseração. Nada que não nos faça rir e chorar ao mesmo tempo. Um pouco de vida em um domingo cinzento e silencioso demais, mas salvo por um mancuniano, o maior de todos.

domingo, 11 de setembro de 2011

Old-fashioned boy


Hoje pela manhã tirei da gaveta a máquina de cortar cabelos. Eu não tenho franja, jamais tive, e hoje, 2011, aos 35 anos, nem se quisesse teria. Meus cabelos caíram, nem de longe lembram aquela foto de 1997, com as pontas cobrindo ombros e orelhas.

Tento soar moderno, mas meu discurso é um pouco antiquado. Talvez em 1989 ele fosse revolucionário. Ou, em 2001, mais combinado com a época. Mas estamos em 2011.

Resisti a jogar as roupas velhas no lixo. Com a máquina de cortar cabelos, aparei do mesmo modo que aparo desde 1998. A minha estante ainda guarda CDs, embora quase todos estejam no iTunes. Olho para o passado e vejo os amores, e os de agora não acontecem.

Digito umas letras e vejo o Brizola. Me emociono. Li um livro de história, lançado há duas semanas, e posso corrigir um capítulo porque estava lá. Outras linhas, escritas enquanto a revolução da última década acontecia, parecem jornal velho. Escrevo num blog e reciclo minhas atualizações. Minha velhice está em repeti-las.

Não sei onde quero chegar com isso. O meu jeito de dançar ainda é estranho, mas parece mais estranho e deslocado se improvisado em um dia de setembro do primeiro ano da segunda década do século 21. Sou um cidadão de outra época. Em breve, disputarei assentos preferencias com cidadãos de mais e menos idade.

Volto ao Brizola. Ele pede um não-rotundo. Estou encerrando hoje o meu ciclo militar. Mas a era do desbunde já passou.

domingo, 28 de agosto de 2011

Dois-zero-cinco


Não existe céu azul como o de Itaquera. Nem tantas gôndulas de refrigerante. Os sucos esperam nas vitrines lácteas. O relógio ainda mostra um telefone começado em 205. E já estamos em 2011.

Não existem pernas como as das meninas de Itaquera. Em seus shorts listrados, regatas puídas, na fila de supermercado esperando o troco. Não há oferta de cândida e sabão em pó como nas vendas de suas ruas. Há mais roupas para lavar e filhos para criar.

Não existe suor como o de Itaquera. A alegria de um domingo às 9h sob o sol quente. O pastel da feira arrasado no óleo. As abóboras para doces que só lá encontro. Mulheres que trocam suas vidas pelos domingos na igreja. Os homens que levam seus filhos para conhecer o Chiquinho. O frango girando no bar do seu Paulo.

Não há quem resista a um domingo em Itaquera.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Dilma, a presidenta


Já tinha passado a hora do almoço. Antes, havia ido à Subprefeitura de Itaquera quitar uns impostos de meu irmão, que por isso me recompensou com a PLACAR daquela semana. Quando voltei, comi e esperei alguns minutos até que minha mãe chegasse.

Hoje, quando lembro de sua chegada, me vem um filme da mostra de 2000, Coisas que Você Diz Só de Olhar para Ela. No caso, são as coisas que ela disse só de olhar para mim. E ela me contou, com os olhos, a morte de meu pai. Tinha 12 anos, e nós soubemos de tudo antes, sem uma palavra e apenas um abraço.

São 22 anos desde então. Minha mãe assumiu as missões de casa e deu a autonomia que talvez poucas dessem aos filhos – seis, no seu caso.

Havia três anos ela passara dos 50. Chegou em São Paulo em 1953, às vésperas do Quarto Centenário. Forçada a estudar apenas até os oito anos, por causa de uma doença adquirida pela minha avó e que jamais a deixaria até a morte, em 1981, deixou o interior do Paraná em um trem da antiga Sorocabana, desembarcando na estação Julio Prestes para morar de favor na casa de um parente, em Guarulhos. Conheceu meu pai em 1957. Casou dois anos depois.

A vida de minha mãe é muito mais independente desde que se tornou viúva. Cinco meses depois, depositou nas urnas seu primeiro voto em uma mulher: Luiza Erundina de Souza, a quem voltaria a escolher outras seis vezes, a última agora, em 3 de outubro. Ela ainda escolheria Marta Suplicy e, agora, nestas eleições, a feminista Ana Luíza e a presidenta.

Ontem, na Paulista, enquanto (muitas) mulheres comemoravam a vitória de Dilma, lembrei muito dela. Minha mãe é uma das mulheres que foram relegadas pelo marido a cuidar dos filhos enquanto o homem era o responsável pelo sustento de casa. Não é coincidência a independência que ganhou sozinha desde a morte de meu pai.

Ela jamais levaria o filho adesivado para um comício, como tantas que vi e me emocionei ontem, mas deixou que o seu, de nove anos, subisse alguns metros a ladeira para ver Lula e outros líderes petistas na campanha de Eduardo Suplicy para a prefeitura, em 1985. De lá, acompanhei a saga daquele pessoal reunido no bar sujo na altura do número 400 da Rio Canabrava até o centro da Cohab 2. Eu não sabia o caminho de volta, mas minha mãe foi até lá me buscar. Essa história ela conta até hoje, orgulhosa, para explicar minha paixão pela política.

Provavelmente, seremos, eu e meus irmãos, os poucos que poderão contar a história de Maria, a mulher escondida no anonimato de dona de casa. Mas volto no tempo e escolho os valores ensinados e que pude distribuir para mais gente que ela, graças a fé que me ensinou a ter – que, depois, longe do bairro, aprendi a separar de religião para desespero dessa católica.

O orgulho que sinto dela é o mesmo dos homens que acompanhavam suas mulheres em uma agenda da campanha de Marta Suplicy em 2004, quando era um de seus assessores. Estava em Campo Limpo, o primeiro bairro na zona sul de São Paulo para quem sai do rico Morumbi. As mulheres da periferia, que muitas redes tendem a desvalorizar o voto, colavam em Marta com o sentimento de que uma igual havia feito tantas coisas para elas e seus filhos. Os homens tinham dois olhos, para as mulheres que amavam e para Marta. Retribuíam, assim, o carinho e o amor – não sei se pelas duas ou, quem sabe, pela mãe que lembro neste texto.

Ontem, enquanto Dilma lia o seu discurso, dividido em duas partes para quem quiser ver no YouTube, percebia aos poucos os sentimentos de mulher que ela jamais ousou deixar de carregar, por mais que piadas grosseiras tentem taxa-la de masculinizada (Por que ela é forte? Por que é poderosa? Por que não é um homem que vai vestir a faixa presidencial? Por que há obrigação de a mulher ser bonita e atraente?). Nos brincos, na maquiagem evidente, no choro.

Dilma é como cada mulher que conheci e amei. Ela pode ser durona e castigar colegas frágeis e mais sensíveis a críticas, como cansei de ouvir de gente que trabalhou com ela. Que eu saiba, Serra e Covas, para ficar em dois exemplos, não eram conhecidos pelo comportamento afável, e este nunca foi um motivo para que seus eleitores deixassem de votar neles. Lendo as revistas semanais, todas em edição comemorativa nesta segunda-feira, lembro da postura olímpica que ela seguiu durante toda a campanha. Não houve um escorregão que manchasse o seu caráter, nenhuma deseducação. Lembrei da famosa mania de José Serra, homem casado, cortejar as repórteres mulheres. E se fosse Dilma a cortejar os homens, qual seria a reação?

As mulheres têm amor, e de um modo e intensidade que um político jamais teria. Comentei que a vitória de Dilma era maior por não ser muleta de marido e nem musa do Congresso. Isso já a deixa longe de um bom número de estereótipos. Falta vencer os de gênero.

Volto a buscar no tempo, mas já longe de minha mãe, a referência. A vitória de ontem foi maior que a de 2002. Não em termos percentuais. Falo de valores. Ali era a esperança; ontem foi o amor. O abraço e o sorriso de Dilma e Lula que o digam.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Bigode, o vizinho


A relação com os vizinhos nunca foi o forte de minha família. Na rua, éramos conhecidos como uma gente bem educada e de pouco contato. Minhas três irmãs mais velhas saiam pouco à rua antes de completar 18 anos. Os homens se afastavam com medo de meu pai, um homem na casa dos 40 anos, alto e com cara de bravo, parceiro de um irmão quase gêmeo, o meu tio Chico, morador de uma casa a menos de 100 metros da minha.

Do lado direito, morava o seu Luiz, marido de dona Joana. Um senhor negro, por volta de 60 anos, que criou uma família ávida por brigas. Seus netos tinham quase a mesma idade que eu e minha irmã mais nova, Claudia. Minha mãe rotulava-os de pouco instruídos. E eram. Lembro de rir das pichações em vermelho taco no banheiro externo deles. “Cenora” e “banhêro” eram algumas delas. Confesso que nunca entendi porque escreveram “cenora” naquele lugar.

No lado de cima vivia a dona Brandina, uma senhora nordestina de muitos filhos. Nunca soube o nome de todos. Conhecia o Mauricio (soube que saiu fugido depois de acusado de assédio) e o Baiano. Este último vivia a me chamar de palmeirense. A culpa era de uma camisa doada pela tia de Bragança Paulista com o símbolo da sociedade esportiva. Tinha bronca do Baiano, mas gostava dele. Queria que se convencesse de que era corintiano, como o boné que usava.

O pessoal da frente era uma gangue de adolescentes rodeados por motos, o dia todo. Tinha pouco contato. Lá morava o Chimbito, um garoto que sofreu queimaduras graves enquanto armava um churrasquinho, aos 5 anos. Fui da mesma classe que ele na primeira série.

Passado o terreno baldio, surgia a casa do Bigode. Enquanto trabalhava, apenas sabíamos de seu nome. Ele não mantinha relações com meu pai ou minha mãe. Cumprimentávamos e era o bastante. Até que o Bigode se aposentou.

Com o tempo, trocaram os vizinhos do lado e da frente. Sobrou o Bigode. Ele passou a querer interagir mais com a rua, mas ninguém mais queria – a época dos novos moradores havia passado, e todos que queríamos ter conhecido direito já tinham as suas intimidades.

A insistência fez com que ele aderisse à parte evitada da rua, a dos caras chatos. Um deles era o Mila e o seu filho. Mila era mecânico de carros e sempre exibia o peito nu e os pelos brancos. Meu pai o odiava pelas vantagens que contava. Sua filha, a Geni, estendia uma toalha na laje e pegava o sol que espiávamos da janela da minha mãe. Ela tinha paixão pelo meu irmão.

O filho de Mila, o Edgard, passava as tardes zombando dos garotos que não eram de sua turma. Minha falta de habilidade no futebol e as desavenças com alguns meninos da vizinhança fizeram com que eu virasse alvo algumas vezes. Ele morria de medo do meu irmão, mas nunca deixei que aquele pré-bullying saísse de lá, do asfalto da rua Rio Imburana.

Mas eles ficavam em outro mundo, enquanto o Bigode insistia em participar do nosso. Nos almoços de fim de ano, reclamou de não ter sido convidado e de não acompanhar os pratos montados e servidos à mesa na garagem, pois a lona preta impedia o alcance de sua visão.

Tinha ideias horríveis, que foram zombadas até pela terceira geração dos Silva. A gente fingia que ele não existia, mas gostava das músicas que sua filha ouvia além do volume permitido. Ainda que tenha visto pouco seu rosto, nutria uma simpatia que jamais tive pelo seu pai.

A última vítima do Bigode foi o cachorro de casa, o Neruda. Das grades do portão, ele o irritava até que começasse a latir. O chamava de Nerudo. Nos últimos meses, vítima de catarata, Neruda perdeu a visão, mas Bigode não deixou de irritá-lo. E os chamados e provocações combinavam sempre com uma cabeçada canina involuntária nos ferros do número 234.

Lembro dessas conexões enquanto me acostumo aqui, com o novo apartamento. Hoje, enquanto colocava o lixo no cesto do corredor, vi duas senhoras que dividem o andar comigo. São cumprimentos de bom dia que provavelmente nunca se estenderão para um convite de jantar/almoço/café. Os tempos dos copos de açúcar ficaram para trás.

Mas sei também que aqui vou desenvolver pouco ou um pouco de minha vida. Uma carga maior, com gente com histórias que podem ser contadas em mais de um parágrafo, já aconteceu. Talvez as próximas possam ser contadas em uma lauda só.

domingo, 24 de outubro de 2010

Dinho, o barbeiro


Barbeiros guardam mais intimidades com os homens que as mulheres e seus cabeleireiros. A fidelidade masculina vai além do corte; há a amizade intrínseca que o força a jamais abandoná-lo. Lembro-me de um chefe, de um jornalão de São Paulo, que insistia em levar do pai ao filho ao mesmo guardião de fios, instalado em uma das esquinas do centro velho paulistano, salvo engano a Benjamin Constant, a poucas quadras da praça da Sé. O velho já não possuía a destreza de outros tempos, mas era uma tradição de família, era preciso segui-la.

A primeira visita ao barbeiro – porque é assim que os homens chamam os outros que lhe cortam os fios – foi meio temerosa. Luiz, um homem que atendia à antiga rua Jacu, no centro de Itaquera, arrancou parte de minha orelha ao passar a navalha. O corte não doeu, mas ao passar a tal da loção (um cheiro que até hoje me dá enjoos) a ferida ardeu. A recomendação de minha mãe foi de que meu pai jamais me levasse de volta àquele estabelecimento. Uma pena: havia uma banca de revista e um ponto final de ônibus, duas coisas que realmente me divertiam.

Outro Luiz, desta vez meu primo, passou a executar os cortes. Ele havia feito um curso de cabelereiro e testava em mim e minhas primas suas experiências. Saíam tortos e rebeldes, havia quem me chamasse de punk – era 1986, o termo estava na moda.

A Nalva, a terceira tentativa, testou cortes new wave, com rabos de cavalo e uma franja medonha. Era alvo de chacota de meu cunhado, que me comparava a Ronny Cócegas. Desisti da modernice e passei a deixar o cabelo crescer. Mas gastava um pouco mais ao frequentar um salão do centro de Itaquera, o Billy. Era quase todo o meu salário para que o corte me fizesse pensar alguém admirado. Na verdade, ele nada funcionava.

Quando abandonei seu salão, fui até a Rose, instalada em uma galeria em cima da avícola. Foi a primeira vez que exigi que saísse de lá com algo que me agradasse. Então os pelos dos lados e a nuca foram eliminados num corte zero, com o cabelo grande sobrepondo essas partes. Existia um pouco mais de mim quando deixei as escadas da galeria.

Mas encontrei mesmo um certo prazer em dedicar meia hora a cada três meses para aparar os cabelos depois de encontrar o Dinho, um vizinho de fundos em Itaquera que abrira um salão a uma quadra de casa. Ele fazia o arroz com feijão: em 15 anos em que o frequento, sempre peço que a máquina 6 seja usada em cima e a dois ao lado. Nos últimos anos, aderi à barba, e ele usa a mesma máquina para apará-la, mas em corte dois e meio.

Não é o estilo de Dinho que me faz ter essa fidelidade. É sentado no balcão, à espera da vez, que escuto as histórias do bairro que aos poucos deixo de saber. Dinho recebe todo dia umas 15 pessoas. Cobra de cada uma 10 reais. São sempre homens, sejam crianças, adultos ou adolescentes. Os menores vêm acompanhados pelas mães. Os adolescentes quase sempre não têm paciência para esperar e vão até o bar em frente enquanto a fila não anda. Outros, como eu, esperam.

Na verdade, eu decido esperar porque quero ouvir. Sei que o velhinho de 65 anos da rua de baixo apareceu na semana passada no Datena. Havia sido descoberto em um esquema para vender carros roubados. “Todos sempre desconfiavam, mas ninguém acreditava porque era muito velho”, disse Dinho. Uma mulher que acompanhava uma criança (tinha 36 anos, mas era a avó – a filha havia engravidado com 15 anos) tecia elogios ao filho, fisgado pelo olho gordo dos outros moradores por estar prestando concurso para Guarda Civil. Na noite anterior, jogando baralho em um bar, apostou dez reais mas não tinha o dinheiro no bolso. Perdeu. Os homens foram até sua casa busca-lo. Ele não pagou. A mãe acreditava que isso tudo era inveja mesmo.

Dinho tem os pais frequentadores da Congregação Cristã. Ele, no entanto, experimenta religiões mas prefere não se decidir. Frequentou a Maranata, a Católica e a Assembleia. Acredita em Deus enquanto a vida anda. Na beira do pequeno salão, antes guardava um freezer com latas de cerveja. Tirou depois de os clientes-bebuns pendurarem e não pagarem. Prefere agora vender gel caseiro – tem um estoque próximo ao forno em que esquenta a tesoura esterilizada.

Ninguém deixa de frequentar o Dinho. Ele é astuto, gente boa e nunca fez maldade na máquina 6 passada sobre a minha cabeça judiada. Não tem time de futebol dentro do salão, mas fora dele até torce. Nos sábados, coloca no Melhor do Brasil, da Record. Enquanto a vida passa com o Rodrigo Faro, a gente comenta da vida – nossa e dos artistas. Na sexta passada, descobri que sabíamos um pouco de Suzano. Eu havia trabalhado lá; o pai do Dinho morava por ali.

O Dinho é um figura que me põe no mundo enquanto eu transito entre o trabalho e a casa. Aqui no Sumaré, estou à parte da civilização, mais próximo do que construí nos últimos 12 anos. No salão da rua Professor Brito Machado, sou um pouco daquele cara construído em 22 anos de Itaquera. Talvez o melhor agradecimento ao Dinho é essa sensação de teletransporte que só ele hoje me traz – tudo isso pelos dez reais cobrados pelo cabelo e pela barba. Justo, justíssimo.