segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Bigode, o vizinho


A relação com os vizinhos nunca foi o forte de minha família. Na rua, éramos conhecidos como uma gente bem educada e de pouco contato. Minhas três irmãs mais velhas saiam pouco à rua antes de completar 18 anos. Os homens se afastavam com medo de meu pai, um homem na casa dos 40 anos, alto e com cara de bravo, parceiro de um irmão quase gêmeo, o meu tio Chico, morador de uma casa a menos de 100 metros da minha.

Do lado direito, morava o seu Luiz, marido de dona Joana. Um senhor negro, por volta de 60 anos, que criou uma família ávida por brigas. Seus netos tinham quase a mesma idade que eu e minha irmã mais nova, Claudia. Minha mãe rotulava-os de pouco instruídos. E eram. Lembro de rir das pichações em vermelho taco no banheiro externo deles. “Cenora” e “banhêro” eram algumas delas. Confesso que nunca entendi porque escreveram “cenora” naquele lugar.

No lado de cima vivia a dona Brandina, uma senhora nordestina de muitos filhos. Nunca soube o nome de todos. Conhecia o Mauricio (soube que saiu fugido depois de acusado de assédio) e o Baiano. Este último vivia a me chamar de palmeirense. A culpa era de uma camisa doada pela tia de Bragança Paulista com o símbolo da sociedade esportiva. Tinha bronca do Baiano, mas gostava dele. Queria que se convencesse de que era corintiano, como o boné que usava.

O pessoal da frente era uma gangue de adolescentes rodeados por motos, o dia todo. Tinha pouco contato. Lá morava o Chimbito, um garoto que sofreu queimaduras graves enquanto armava um churrasquinho, aos 5 anos. Fui da mesma classe que ele na primeira série.

Passado o terreno baldio, surgia a casa do Bigode. Enquanto trabalhava, apenas sabíamos de seu nome. Ele não mantinha relações com meu pai ou minha mãe. Cumprimentávamos e era o bastante. Até que o Bigode se aposentou.

Com o tempo, trocaram os vizinhos do lado e da frente. Sobrou o Bigode. Ele passou a querer interagir mais com a rua, mas ninguém mais queria – a época dos novos moradores havia passado, e todos que queríamos ter conhecido direito já tinham as suas intimidades.

A insistência fez com que ele aderisse à parte evitada da rua, a dos caras chatos. Um deles era o Mila e o seu filho. Mila era mecânico de carros e sempre exibia o peito nu e os pelos brancos. Meu pai o odiava pelas vantagens que contava. Sua filha, a Geni, estendia uma toalha na laje e pegava o sol que espiávamos da janela da minha mãe. Ela tinha paixão pelo meu irmão.

O filho de Mila, o Edgard, passava as tardes zombando dos garotos que não eram de sua turma. Minha falta de habilidade no futebol e as desavenças com alguns meninos da vizinhança fizeram com que eu virasse alvo algumas vezes. Ele morria de medo do meu irmão, mas nunca deixei que aquele pré-bullying saísse de lá, do asfalto da rua Rio Imburana.

Mas eles ficavam em outro mundo, enquanto o Bigode insistia em participar do nosso. Nos almoços de fim de ano, reclamou de não ter sido convidado e de não acompanhar os pratos montados e servidos à mesa na garagem, pois a lona preta impedia o alcance de sua visão.

Tinha ideias horríveis, que foram zombadas até pela terceira geração dos Silva. A gente fingia que ele não existia, mas gostava das músicas que sua filha ouvia além do volume permitido. Ainda que tenha visto pouco seu rosto, nutria uma simpatia que jamais tive pelo seu pai.

A última vítima do Bigode foi o cachorro de casa, o Neruda. Das grades do portão, ele o irritava até que começasse a latir. O chamava de Nerudo. Nos últimos meses, vítima de catarata, Neruda perdeu a visão, mas Bigode não deixou de irritá-lo. E os chamados e provocações combinavam sempre com uma cabeçada canina involuntária nos ferros do número 234.

Lembro dessas conexões enquanto me acostumo aqui, com o novo apartamento. Hoje, enquanto colocava o lixo no cesto do corredor, vi duas senhoras que dividem o andar comigo. São cumprimentos de bom dia que provavelmente nunca se estenderão para um convite de jantar/almoço/café. Os tempos dos copos de açúcar ficaram para trás.

Mas sei também que aqui vou desenvolver pouco ou um pouco de minha vida. Uma carga maior, com gente com histórias que podem ser contadas em mais de um parágrafo, já aconteceu. Talvez as próximas possam ser contadas em uma lauda só.

Um comentário:

  1. Eu acho que a gente precisa admirar um sujeito cujo o cão da adolescência se chamava Neruda.

    Beijos com açúcar.

    ResponderExcluir