segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Dilma, a presidenta


Já tinha passado a hora do almoço. Antes, havia ido à Subprefeitura de Itaquera quitar uns impostos de meu irmão, que por isso me recompensou com a PLACAR daquela semana. Quando voltei, comi e esperei alguns minutos até que minha mãe chegasse.

Hoje, quando lembro de sua chegada, me vem um filme da mostra de 2000, Coisas que Você Diz Só de Olhar para Ela. No caso, são as coisas que ela disse só de olhar para mim. E ela me contou, com os olhos, a morte de meu pai. Tinha 12 anos, e nós soubemos de tudo antes, sem uma palavra e apenas um abraço.

São 22 anos desde então. Minha mãe assumiu as missões de casa e deu a autonomia que talvez poucas dessem aos filhos – seis, no seu caso.

Havia três anos ela passara dos 50. Chegou em São Paulo em 1953, às vésperas do Quarto Centenário. Forçada a estudar apenas até os oito anos, por causa de uma doença adquirida pela minha avó e que jamais a deixaria até a morte, em 1981, deixou o interior do Paraná em um trem da antiga Sorocabana, desembarcando na estação Julio Prestes para morar de favor na casa de um parente, em Guarulhos. Conheceu meu pai em 1957. Casou dois anos depois.

A vida de minha mãe é muito mais independente desde que se tornou viúva. Cinco meses depois, depositou nas urnas seu primeiro voto em uma mulher: Luiza Erundina de Souza, a quem voltaria a escolher outras seis vezes, a última agora, em 3 de outubro. Ela ainda escolheria Marta Suplicy e, agora, nestas eleições, a feminista Ana Luíza e a presidenta.

Ontem, na Paulista, enquanto (muitas) mulheres comemoravam a vitória de Dilma, lembrei muito dela. Minha mãe é uma das mulheres que foram relegadas pelo marido a cuidar dos filhos enquanto o homem era o responsável pelo sustento de casa. Não é coincidência a independência que ganhou sozinha desde a morte de meu pai.

Ela jamais levaria o filho adesivado para um comício, como tantas que vi e me emocionei ontem, mas deixou que o seu, de nove anos, subisse alguns metros a ladeira para ver Lula e outros líderes petistas na campanha de Eduardo Suplicy para a prefeitura, em 1985. De lá, acompanhei a saga daquele pessoal reunido no bar sujo na altura do número 400 da Rio Canabrava até o centro da Cohab 2. Eu não sabia o caminho de volta, mas minha mãe foi até lá me buscar. Essa história ela conta até hoje, orgulhosa, para explicar minha paixão pela política.

Provavelmente, seremos, eu e meus irmãos, os poucos que poderão contar a história de Maria, a mulher escondida no anonimato de dona de casa. Mas volto no tempo e escolho os valores ensinados e que pude distribuir para mais gente que ela, graças a fé que me ensinou a ter – que, depois, longe do bairro, aprendi a separar de religião para desespero dessa católica.

O orgulho que sinto dela é o mesmo dos homens que acompanhavam suas mulheres em uma agenda da campanha de Marta Suplicy em 2004, quando era um de seus assessores. Estava em Campo Limpo, o primeiro bairro na zona sul de São Paulo para quem sai do rico Morumbi. As mulheres da periferia, que muitas redes tendem a desvalorizar o voto, colavam em Marta com o sentimento de que uma igual havia feito tantas coisas para elas e seus filhos. Os homens tinham dois olhos, para as mulheres que amavam e para Marta. Retribuíam, assim, o carinho e o amor – não sei se pelas duas ou, quem sabe, pela mãe que lembro neste texto.

Ontem, enquanto Dilma lia o seu discurso, dividido em duas partes para quem quiser ver no YouTube, percebia aos poucos os sentimentos de mulher que ela jamais ousou deixar de carregar, por mais que piadas grosseiras tentem taxa-la de masculinizada (Por que ela é forte? Por que é poderosa? Por que não é um homem que vai vestir a faixa presidencial? Por que há obrigação de a mulher ser bonita e atraente?). Nos brincos, na maquiagem evidente, no choro.

Dilma é como cada mulher que conheci e amei. Ela pode ser durona e castigar colegas frágeis e mais sensíveis a críticas, como cansei de ouvir de gente que trabalhou com ela. Que eu saiba, Serra e Covas, para ficar em dois exemplos, não eram conhecidos pelo comportamento afável, e este nunca foi um motivo para que seus eleitores deixassem de votar neles. Lendo as revistas semanais, todas em edição comemorativa nesta segunda-feira, lembro da postura olímpica que ela seguiu durante toda a campanha. Não houve um escorregão que manchasse o seu caráter, nenhuma deseducação. Lembrei da famosa mania de José Serra, homem casado, cortejar as repórteres mulheres. E se fosse Dilma a cortejar os homens, qual seria a reação?

As mulheres têm amor, e de um modo e intensidade que um político jamais teria. Comentei que a vitória de Dilma era maior por não ser muleta de marido e nem musa do Congresso. Isso já a deixa longe de um bom número de estereótipos. Falta vencer os de gênero.

Volto a buscar no tempo, mas já longe de minha mãe, a referência. A vitória de ontem foi maior que a de 2002. Não em termos percentuais. Falo de valores. Ali era a esperança; ontem foi o amor. O abraço e o sorriso de Dilma e Lula que o digam.

2 comentários:

  1. Que texto lindo.
    Eu acho que eleger uma presidenta é uma honraria à feminilidade ( aquela não imbecilizada).

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